Por quem dobram os
sinos de Minas? Pela tradição, pela história – e pela comunicação. Em muitas
cidades coloniais, esses instrumentos de bronze continuam como agentes de
informação, chamando para festas, convocando fiéis para missas e com o poder
até de alertar para calamidades.
Em São João del-Rei,
no Campo das Vertentes, a atividade passa de pai para filhos e de tios para
sobrinhos, mostrando que ritmo, técnica e bom ouvido são imprescindíveis para
fazer o repique chegar à população sempre pela beleza, jamais pelo incômodo. Na
mesma cidade, um sineiro atende encomendas de todo o país e uma peça já foi
enviada para Miami, nos Estados Unidos.
Também Uberaba emite
bons sons, e uma empresa de fundição exportou para o Vaticano. E como fazer essa história se tornar cada vez
mais viva? A professora aposentada de Mariana, Hebe Rôla, autora de um livro
infantil sobre o tema, visita escolas e conta à criançada sobre a importância
de se preservar a linguagem dos sinos.
Já para quem acha que
se trata de um objeto sem serventia, obsoleto, vale o alerta: os ladrões estão
de olho neles. No ano passado, um sino, pesando 120 kg, foi arrancado da
centenária Capela de Santo Antônio do Monte, no distrito de Engenheiro
Nogueira, em Ouro Preto. A polícia e o Ministério Público Estadual (MPE)
investigam o sumiço. Portanto, enquanto os sinos dobram nas igrejas, as
autoridades devem “redobrar” os cuidados para mantê-los aos olhos e ouvidos da
população. Em perfeito estado.
São João del-Rei –
Uma escada de pedra com 77 degraus e outra de ferro, com onze, conduzem à torre
da Catedral de Nossa Senhora do Pilar e a uma das mais belas e antigas
tradições de Minas. Nesse ponto de onde se avistam outras igrejas e parte de
São João del-Rei, no Campo das Vertentes, reluzem os sinos que chamam os
católicos para missas e procissões, dão notícias a todos sobre mortes e
enterros e podem até informar sobre chuvas e incêndios. Enfim, um sistema de
comunicação velho como o tempo e em plena atividade nesse mundo tão
tecnológico.
O acesso estreito e
em curvas que conduz ao campanário da catedral não assusta os jovens Vinícius
Adriano Faria Silva e Lucas Henrique dos Santos Bispo, ambos de 16 anos,
acostumados, desde a infância, a “passar sebo nas canelas” e atingir a corda e o instrumento em
questão de segundos. Com experiência e destreza, a dupla põe os sinos em
movimento – desta vez, na noite de segunda-feira, para convocar os integrantes
da Irmandade das Almas para a missa.
Piercing brilhante no
nariz, cabelo discretamente cortado à la Neymar e quase sempre com a camisa do
Flamengo, time do coração, Vinícius faz parte de uma família de sacristãos e
sineiros que demonstram completa intimidade com os templos barrocos de São João
del-Rei, chamada, muito apropriadamente, de cidade dos sinos, por manter a
tradição dos dobros, repiques e badaladas, sem interferências, desde o período
colonial. “Não é preciso força, mas jeito”, explica o adolescente sobre o
ofício que aprendeu aos quatro anos com o tio Rodrigo. “Meu pai Fábio, sineiro
da catedral, não gostava que eu subisse na torre, pois tinha medo que eu caísse
de lá. Agora, são as meninas que ficam preocupadas…”, brinca o jovem sobre o
charme e mistério que a atividade desperta. Hoje, a cidade assiste, no Largo do
Rosário, às 19h30, à Sinfonia dos sinos, um espetáculo com orquestra de músicos
locais, com repeteco em 23 de junho e 4 de agosto. O nome do concerto é para
homenagear São João del-Rei.
Quem vê os jovens
movimentando os sinos pode até pensar que são dois malabaristas, pois, às
vezes, para fazer o sino dobrar, chegam a ficar encurvados, com os pés na
parede. Aos olhos de quem acompanha a cena, dá um certo medo de que eles se
projetem no espaço, mas é tudo ilusão de ótica – são cobras criadas. “Perigoso
mesmo é o sino voltar e bater na nossa cabeça. No início, isso ocorria, agora
não. A torre libera o estresse, dá muita adrenalina”, diz o rapaz. Já no
campanário da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, o tio Rodrigo Leandro da
Silva, de 41, demonstra total satisfação em ser um “sineiro com carteira
assinada”, atividade iniciada aos 21.
Senhora é morta! Na
família Silva, de seis filhos, só um fugiu à regra e não trilhou os caminhos da
torre das igrejas, mas alguns sobrinhos seguem os passos. No campanário do
Rosário, enquanto “comunica” a chegada do enterro de uma mulher da irmandade,
Rodrigo conta sobre a mecânica com a qual lida diariamente. “Os sinos pequenos
fazem a marcação dos repiques, o médio faz a pergunta e o grande responde. Os
três fazem um diálogo entre si.” A convite do Estado de Minas, numa noite fria
e chuvosa, parte da família Silva se reuniu na torre da catedral para uma
pequena demonstração dessa arte milenar.
Giovanni Tirado
Santos Silva, de 29, o Vaninho, auxiliar de escritório, é também sacristão da
Capela de Santo Antônio e traz o gosto herdado do pai, José Giovani, e dos
tios. “Sinto muito orgulho.” Ao lado, José Giovani, sacristão da Igreja das
Mercês, lembra que “sino não tem nota musical” e que para ser um bom sineiro é
preciso, basicamente, ritmo e ouvido. Os irmãos destacam que todo sino deve ser
batizado e abençoado antes do uso, ganhando, assim, um nome.
Os irmãos Rodrigo,
Alessandro, José Giovani, Fábio e Luiz Eduardo, que já foi sineiro, são bem
afinados na missão. Alessandro William da Silva, de 37, sacristão da catedral,
afirma que técnica é outro componente fundamental. Ele considera o toque mais
bonito o da Festa da Boa Morte – Trânsito e Assunção de Nossa Senhora, em 14 de
agosto. No último dia de novena, véspera da festa, os sinos repicam, de hora em
hora, “Senhora é morta!”, somente na torre esquerda da catedral, em quatro
sinos. O repique é realizado até o Glória da Missa da Assunção de Nossa
Senhora, no dia 15. Será o mundo dos sineiros masculino? A resposta bate na
tecla da “força”, mas uma lenda antiga ainda fala grosso. Dizem os antigos que
se o cabelo da mulher batesse no sino ele trincava.
Ao ouvir os sons
vindos da torre, os visitantes se encantam. O casal de arquitetos Rinaldo Reis
e Suzana Mota, de São Paulo (SP), falou a Laura, de 11, e Vitória, de 5, sobre
a importância desse tesouro de Minas, já reconhecido como Patrimônio Imaterial
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Eles
estão para o século 18 e 19 como o telefone celular está para o nosso tempo”,
comparou Suzana.
Dias de matraca. Em
São João del-Rei, há 27 modalidades diferentes de toques, incluindo avisos de
missas, chamada de irmãos, Natal e outros. A cidade resguardou o toque
canônico, determinado pelo sínodo ocorrido na Bahia, em 1720 – ano das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia –, mas também incorporou, com o
tempo, alguns motivos leigos, que partiram dos escravos. “Os sinos só se calam
no período de quinta-feira santa após a missa das 18h até o glória da vigília
pascal no sábado à tarde. Nesses dias, só matraca”, explica o secretário da
Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, músico e estudioso do tema, Aluízio
José Viegas, de 72 anos. “E em alguns dias, como a festa da padroeira, em 12 de
outubro, domingo de Ramos, Natal e Ascensão, não se toca o dobre fúnebre.”
São João del-Rei,
entre as cidades brasileiras e coloniais mineiras, foi a que mais conservou
antigas tradições, e Viegas cita como principais as solenidades religiosas,
litúrgicas e paralitúrgicas, música sacra em sua prática de coro e orquestra e
toques de sinos, em suas múltiplas modalidades rítmicas. Ele lembra que no
passado quase todas as cidades do país tinham no toque dos sinos o seu meio de
comunicado mais usado. “As igrejas e capelas podiam prescindir de alfaias ricas
e prataria, mas nunca dos sinos, mesmo que pequeno e apenas um. Eram o elo do
clero com os fieis leigos e suas vozes de bronze congregavam, com facilidade,
toda a comunidade”, afirma.
Peças - Em Minas,
segundo as autoridades eclesiásticas e do patrimônio, não se sabe o número
exato de sinos: seria como contar as estrelas do céu, tal a infinidade de
campanários, ermidas de fazendas, capelinhas de povoados e outros monumentos.
Mas é possível saber como se dá o nascimento das peças de bronze. Na sua
oficina, no Bairro Colônia do Marçal, José Edivaldo Ribeiro da Silva, de 57
anos, pai de cinco filhos, recria, na prática, a beleza da forma, a qualidade
do som e a magia que envolve o repicar dos sinos. E tem prazer em trabalhar num
esquema totalmente artesanal. Funde, no cadinho, as ligas de cobre e estanho,
para obter o bronze, molda a peça numa caixa enterrada no chão, retira as
rebarbas e faz os arremates com a suas ferramentas. O filho Cleiton, de 35, já
é craque no assunto e auxilia o pai no cotidiano.
Natural do Tocantins,
Edivaldo chegou a Minas aos seis anos, passando a residir em São João del-Rei
em 1974. Técnico em metalúrgica, começou a fabricar sinos como quem encara um
desafio, e hoje faz peças que pesam de 1kg a 600kg. O sineiro conta que
aprendeu a trabalhar admirando as torres das igrejas antigas. “Compreendi que
um som puro é determinado pela liga e pela espessura do sino. Os existentes em
São João del-Rei são mesmo diferentes, devido ao material usado nos séculos 18
e 19. Para o som ficar mais agudo, é preciso elevar a quantidade de estanho; e
para torná-lo grave, deve-se baixá-lo”, ensina.
A construção do sino
é processo longo e demorado, está bem próxima de uma “gestação”. Na primeira
etapa, Edivaldo faz a liga de cobre e estanho, para formar o bronze. Num
cadinho, derrete o cobre e depois adiciona o estanho também derretido e espera
uma semana para que o resultado fique perfeito. Na etapa seguinte, é preciso
colocar o molde (de alumínio) dentro de uma caixa, que fica enterrada. A partir
da chamada liga-mãe, feita na fase anterior, Edivado faz nova fundição,
juntando níquel. Chega a hora de fazer o “vazamento”, despejando o bronze para
dar forma ao sino.
Depois de alguns dias
enterrado, o sino se encontra em estado bruto, pronto para ser lapidado e
receber o acabamento. Com cuidado, Edivaldo leva a peça para a oficina. Nesse
local, ele passa a lixadeira para tirar os excessos e dar polimento.
Os tempos modernos
não aposentaram os instrumentos de bronze. Na terra do zebu, Uberaba, a 472
quilômetros de Belo Horizonte, a Fundição Artística de Sinos (Fasu) da cidade
tem 30 anos de experiência e trabalha sob encomenda, tendo como maiores
fregueses padres, donos de fazendas, prefeituras e outros. O encantamento pelas
peças vem da fé e do gosto pela arte, diz José William da Silva, filho do
proprietário, José Donizetti da Silva, que iniciou as atividades em São Paulo.
A empresa tem um tipo de sino com música, que, conforme José William, não tem a
ver com equipamentos eletrônicos. “O som sai do próprio sino, por um sistema em
que o martelo é acionado de forma eletromecânica”.
Sensibilidade – Um
friozinho gostoso já domina as manhãs da primeira vila, cidade e diocese de
Minas. No outono de céu azul, a luz solar realça ainda mais as belas
construções coloniais de Mariana, entre elas a Câmara, as igrejas de São
Francisco e Nossa Senhora do Carmo e a Catedral da Sé, no Centro Histórico.
Perto dali, na Rua Dom Silvério, conhecida como “dos Artistas”, fica o casarão
onde mora a professora
emérita da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Hebe Rôla. Na
quarta-feira, com seu charme habitual – chapéu combinando com a bolsa e o
casaco beges –, ela saiu cedo para fazer o que mais gosta: falar aos
estudantes. Dessa vez, o assunto era um dos preferidos: a linguagem dos sinos,
que estuda desde a década de 1980 e ao qual dedicou um livro para a criançada:
Bem-te-sino.
A obra fala de um
bem-te-vi que queria ser um sino de Mariana, cidade que também conserva esse
velho sistema de comunicação entre a Igreja e a população. E, para encantar
ainda mais os estudantes, a professora carrega, para as suas palestras, todos
os personagens do livro – em forma de brinquedos. Na Escola Estadual Dom Benevides
(de tempo integral), as turmas do 1º ao 5º ano ficam de olhos grudados e
ouvidos atentos para não perder uma explicação sequer da professora. Para
começar, ela convocou, especialmente, os integrantes da centenária Sociedade
Musical União XV de Novembro, que tocam um trecho de Os sinos de minha terra,
do compositor marianense Aníbal Walter.
Bronze - Na antiga
Vila Rica, uma curiosidade chama logo a atenção de quem sobe à torre da Igreja
Matriz de Nossa Senhora do Pilar, no Centro Histórico. Os sinos do século 19
trazem inscrições em latim, gravadas na bacia, apontando a sua função –“É uma
particularidade”, diz o diretor do Museu de Arte Sacra, Carlos José Aparecido
de Oliveira, o Caju. Na torre, ele mostra o sino da Irmandade de Santo Antônio,
onde se lê: Fugo flumina. Festa decoro. Laudo Deum verum. Defunetus ploro.
Congrego clerum. Populum voco, que se traduz por “Anuncio incêndios, espanto
tempestade e intempéries. Alegro e decoro as festas. Louvo o Deus verdadeiro.
Choro os que morrem e falecidos. Congrego e reúno o clero. Chamo e convoco o
povo para as preces”.
Caju conta que os
três sinos do campanário do Pilar estão rachados, “tocando ainda por teimosia”.
Na igreja de Nossa Senhora do Carmo, perto da Praça Tiradentes, no Centro
Histórico, está o maior sino de Minas, e que, como todos os demais, tem nome de
batismo: Elias, diz o sacristão Jovelino Teodoro da Silva, de 70, que já tocou
muitas vezes esse monumento de Ouro Preto. Elias pesa 1,5 tonelada. A palavra
sino vem de “signo” que quer dizer sinal. Ao longo dos tempos, representa uma
comunicação do homem com Deus”, explica o pesquisador cultural Chiquinho de
Assis, autor da dissertação de mestrado Postes, pernas e panelas – Relato
etnográfico da prática sineira em Ouro Preto, defendida na Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG).
Chiquinho de Assis
conta que a linguagem dos sinos está presente também em cidades como Congonhas,
Catas Altas, Serro e Diamantina. Nessa última, revela, há uma característica:
“Os sinos não se movimentam, permanecem o tempo todo parados, mesmo durante os
dobres”.
Fonte: Por Gustavo Werneck – Jornal Estado de Minas