Professora Anne Becker: sensualidade à antiga (foto de Leandro Walicek)
Em dias de Lingerie
Day, posto para vocês a versão ampliada de uma matéria que fiz no ano passado
para a revista Alfa, sobre mulheres que gostam de se exibir, com depoimentos de
pessoas bem bacanas que acabaram ficando de fora da versão final.
Professoras que pagam
para tirar a roupa em ensaios sensuais ou mães de família que se fotografam
nuas em banheiros e provadores. Quem são as mulheres que se exibem por prazer.
Durante uma festa de
casamento em um bufê sofisticado, uma das convidadas pede licença para ir à
toalete. Ana é uma senhora como as outras da festa: uma mãe de família ainda
bonita em seus 48 anos, vestida num tailleur elegante, nada que chame a
atenção. Passando por garçons empertigados que entregam os alimentos pela
esquerda e as bebidas pela direita conforme os mandamentos do serviço à
francesa, Ana chega ao banheiro do bufê. Assim que tranca a porta, contudo, a
madame adota um procedimento que a etiqueta européia nunca teria previsto. Após
abaixar a calça e a calcinha, ela saca da bolsa uma câmera digital, desliga o
flash e passa a fotografar a própria nudez. Cinco minutos depois, Ana já está
de volta à mesa, aproveitando discretamente a festa ao lado do marido e do
casal de filhos.
No dia seguinte, Ana
trata de publicar em seu blog as imagens da noite anterior, ao lado de centenas
de outras fotos que mostram todas as partes do seu corpo — todas, menos o
rosto. Filhos e marido não podem saber que a mãe e esposa do mundo real adota
na Web a identidade de uma “madame e puta” chamada Escravinha Feliz, que adora
se exibir em closes ginecológicos.
— Não me excitaria
fazer fotos comportadinhas... Adoro uma vulgaridade — diz.
Expor-se ao onanismo
de outros internautas foi a maneira que Ana encontrou para compensar a
frustração sexual da vidinha convencional que levava ao lado do marido — um
profissional liberal bem sucedido que ela ama, porém considera “muito devagar”
para satisfazê-la sexualmente, mais interessado em colecionar dinheiro do que
orgasmos.
Na sua vida secreta,
Escravinha fica excitada tanto por se ver (“Quando baixo as fotos, fico meio
louca por mim mesma, acho que eu até me comeria”) como por saber que é vista —
e desejada.
— Gosto de mexer com
a libido alheia. Saber que o mundo pode me ver tão intimamente é muito gostoso
— afirma essa Dama do Lotação da era virtual.
Expor a sensualidade
na Web é um hobby também para a professora de inglês Anne Becker, 22 anos, mas
acabam aí suas semelhanças com Ana/Escravinha. As fotos que Anne exibe são
discretas e sofisticadas, um erotismo à moda antiga feito de corsetes,
cintas-ligas e meias arrastão. Anne descobriu esse mundo ainda na infância,
assistindo aos clássicos de Hollywood com os pais. Na adolescência, gostava de
comprar lingeries trabalhadas para dançar sozinha no quarto, imaginando-se Ava
Gardner ou Jean Harlow diante do espelho. É o que Anne continua a fazer até
hoje, mas o espelho em que se exibe atualmente são os sites das suas redes
sociais (Tumblr, Flickr, Twitter), nos quais a professora publica imagens suas
clicadas por um amigo fotógrafo.
— Todo ser humano,
não só a mulher, é exibicionista — diz Anne, que sonha em se tornar estilista
de uma linha de lingeries produzida para resgatar a “sexualidade misteriosa e
artística de antigamente”.
Para Anne, explorar a
própria sexualidade na Web é “uma forma de femininismo”:
— Mulheres lutaram
durante muito tempo para conseguirem explorar a sensualidade sem serem julgadas
por isso — afirma a professora, que
sonha em se tornar estilista de uma linha de lingeries pensada para resgatar a
“sexualidade misteriosa e artística de antigamente”.
Pode ser a sacanagem
anônima de Ana/Escravinha, o erotismo saudosista de Anne ou todas as variações
possíveis entre um e outro. Não importa. Elas querem tirar a roupa. Cada vez
mais mulheres, de todas as idades, estilos e profissões, tomam a iniciativa de
exibir a própria sensualidade, aproveitando as novas tecnologias que baratearam
a produção e disseminação de imagens. São amadoras dedicadas, que não apenas se
exibem de graça como podem até pagar para se expor — como as mulheres que
gastam até R$ 4.000 para fazer um “book sensual”, item que algumas já
consideram pelo menos tão importante quanto o álbum de casamento.
A ânsia feminina pela
autoexposição está tão disseminada que pode transformar uma piada num
megaevento virtual, como descobriu por acaso o advogado Fernando Gouveia (na
Web, Gravataí Merengue). Em julho de 2009, durante uma conversa com amigos no
Twitter, ele brincou escrevendo que o site deveria ter seu Lingerieday, uma
data para os twitteiros publicarem fotos de si próprios em roupas de baixo.
— Começou de uma
gozação, piada mesmo — lembra Gouveia, que no dia seguinte foi pego de surpresa
pela chuva de centenas de imagens de mulheres em roupas íntimas que inundou o
Twitter. A esbórnia coletiva ganharia ares de evento: o Lingerieday entra
regularmente para os Trending Topics como um dos termos mais acessados pelos
usuários do Twitter em todo o mundo e recebe a adesão de milhares de
participantes, algumas das quais chegam a comprar lingeries novas especialmente
para mostrar no dia combinado.
Gouveia, que também
faz questão de se exibir no Lingerieday, lembra que o evento é, em tese,
unissex — embora a quantidade de homens que mostram as próprias cuecas seja
proporcionalmente muito menor, a ponto de passarem quase despercebidos. Para
ele, o exibicionismo virtual se limita a espelhar o que ocorre no mundo
off-line:
— Acho que a vaidade
é uma coisa nossa, humana, não exatamente da mulher. Os homens quando são mais
bonitos também gostam de tirar a roupa, mas em geral somos bem feios.
Lu Bom: "Postar
fotos já me rendeu umas boas trepadas, o que nunca é demais"
Motivo para uma mulher tirar a roupa é o que não falta.
— Ela pode querer se
mostrar para ouvir elogios, para chamar a atenção de alguém especificamente, ou
de todos em geral. Pode ser pra se sentir mais feminina. Pode ser uma exposição
com o intuito geral de conhecer gente interessante... enfim. Eu arriscaria
dizer que é pra se divertir mesmo — afirma uma tradutora de 28 anos que prefere
se identificar apenas como Lu Bom, por temer a rejeição do ambiente
universitário em que estuda.
“Viciada em ver
putaria na internet”, Lu prefere ser espectadora da sacanagem virtual. Mas,
como todo voyeur tem seus dias de caça, Lu não resiste a publicar algumas fotos
suas de calcinha e sutiã no Twitter, durante o Lingerieday, e em outros sites.
Por quê? Lu cita dois
motivos. O primeiro, ligado ao autoconhecimento:
— Gosto de ter fotos
do meu corpo como um registro, pra que no futuro eu tenha fotos de como fui, e
principalmente para que eu mesma possa me ver do ponto de vista do outro.
E cita um segundo
motivo, bem mais prático:
— Postar uma foto ou
outra na internet me aproximou de pessoas legais e já me rendeu umas boas
trepadas, o que nunca é demais.
A nudez fotografada é
tão fascinante para quem se expõe como para quem a vê. Observar a própria nudez
numa foto é uma experiência que mistura familiaridade e estranheza, como um
médium que enxerga o próprio corpo durante uma viagem astral.
Mariane: "Quero
continuar me fotografando até ficar velhinha"
— Tirar uma foto é
diferente de se olhar no espelho. Você consegue se ver da maneira como as
outras pessoas vêem você — explica a estudante de Rádio e TV Mariane Custódio,
24 anos.
Mariane começou a
tirar fotos de si e de suas amigas por brincadeira, durante as festas de pijama
da adolescência. Com a experiência, aprendeu a conhecer seu próprio corpo e a
gostar de ver as próprias formas. Tirar a roupa diante da câmera tornou-se um
hábito: dos 19 aos 23 anos, fez cinco ensaios sensuais com amigos fotógrafos.
Mesmo que poucos tenham visto as fotos (a circulação dos ensaios ficou restrita
a alguns amigos), aquelas imagens colaboraram com sua autoestima e, hoje, são o
seu Prozac.
— Quando estou me
achando feia, pego para ver alguma dessas fotos e volto a me sentir bonita —
conta. — Quero continuar me fotografando até ficar velhinha.
Para Gustavo Gitti,
editor de conteúdo do site Papo de Homem, as mulheres se expõem em busca de uma
identidade.
— As mulheres (homens
também, aliás) são dependentes do olhar masculino ou feminino para afirmar sua
identidade. ‘Quem sou?’ é inseparável de ‘Quem você vê quando olha pra mim?’” —
opina . Assim, mostrar o corpo seria “uma forma de ser olhada, reconhecida, de
se sentir viva, de ter o próprio corpo, por mais estranho que isso pareça”.
Talvez por isso um
ensaio sensual seja capaz de produzir tanto impacto na autoestima feminina. Foi
assim para a dona-de-casa Catharina Mota Souza, 26 anos, passou tempos difíceis
após o nascimento da primeira filha. Prematuro de seis meses, o bebê de 900
gramas passou seus primeiros três meses na UTI e, ao sair, continuou a demandar
uma série de cuidados especiais nas mãos de pediatras, fisioterapeutas,
oftalmologistas, neurologistas... A menina estava bem, mas Catharina sentia-se
desanimada.
Catharina encontrou
uma saída ao ver “Minha patroa é um avião”, quadro do programa “Superpop” em
que a fotógrafa Gina Stocco
produz ensaios sensuais de mulheres casadas. Catharina adorou a idéia.
Selecionada pelo programa, pode provar que, além de mãe, era também uma mulher
provocante que podia se deitar na mesa de sinuca do bar favorito de seu marido,
vestindo máscara e lingerie, sendo fotografada por Ginna diante de dezenas de
freqüentadores.
Ao contrário de
outras protagonistas de books sensuais, Catharina nega que tenha feito o ensaio
para agradar ao marido:
— Eu fiz para agradar
a mim mesma.
Pronto o ensaio, o
que acender para valer a vaidade de Catharina foram os elogios que ela
recebeu... de outras mulheres.
— As mulheres são
muito mais cruéis do que os homens em seus comentários. Por isso os elogios
femininos me fizeram muito bem, mais do que os masculinos — compara.
É, talvez essa festa
de mulheres arrancando alegremente a roupa, no fundo, não seja para os nossos
olhos.
Carpinejar: elas só
querem se mostrar para as outras mulheres
Partindo do príncípio
de que “toda mulher nasce lésbica e depois se torna heterossexual”, Carpinejar
acredita que as mulheres que se exibem estão na verdade “querendo se mostrar
para as outras mulheres”.
— É como uma mulher que compra uma roupa nova e pede a
opinião para ti. Não importa o que tu fales, ela sempre quer a opinião de outra
mulher — afirma o poeta.
Carpinejar lembra que
as mulheres sempre tiveram o “voyeurismo manso dos álbuns de fotografia”.
“Mulheres só debutam e casam para poder ter o álbum de fotografias”, diz. Para
o poeta, elas têm a necessidade de “cristalizar seus momentos” em fotografias
porque têm, como ninguém, “a consciência do quanto a imagem é provisória” e de
que a beleza não vai durar para sempre.
E o poeta dá uma
dica: a vaidade é essencial, mas não pode virar narcisismo nem megalomania.
— A mulher não pode
se banalizar. Precisa guardar sempre algum pudor, sentir uma vergonha do que
ela tem de mais valioso — aconselha.
Autora do ensaio de
Catharina, Gina Stocco conta que descobriu o mercado dos ensaios sensuais por
acaso. Após posar para um namorado fotógrafo, há cinco anos, começou a tirar
fotos das amigas e logo percebeu que aquilo poderia virar um negócio: hoje, cobra
até R$ 4.100 por um book.
Atuando no mercado
desde 2008, o fotógrafo Marcus Steinmeyer já coleciona histórias de mulheres
que salvaram o casamento após um ensaio sensual e algumas observações curiosas:
“As mulheres mais cheinhas são as que têm mais autoestima e aceitam melhor o
próprio corpo”. Para Steinmeyer, o desejo exibicionista feminino sempre
existiu; o que mudou foi a entrada em cena da fotografia digital, que tornou
viável vender books sensuais para pessoas comuns.
Cliente de Stenmeyer,
a promotora de eventos Renata Malavazzi, 35 anos, pagou um ensaio sensual no
ano passado e não vê a hora de fazer o próximo. As oito horas que passou diante
da câmera, bebendo algumas doses de uísque para relaxar, significaram para ela
“um dia de glamour”.
— Queria ter essas
fotos para provar que posso ser tão sensual quanto qualquer mulher que sai em
revista — afirma Renata.
Talvez a vontade de
tirar a roupa para vestir a pele de uma gostosa seja uma reação à mudança nos
papéis que as mulheres passaram a desempenhar nas últimas décadas: obrigadas a
acumular Profissional, Mãe e Dona-de-Casa, num belo dia elas perceberam que
haviam se esquecido da Mulher.
— A gente procurou
tanto se igualar aos homens na labuta, no dividir os papéis dentro de casa, que
esqueceu aquela nossa parte feminina que nos diferencia dos homens — conta a
professora universitária Flávia Roger, 36 anos. Para ela, a nova nudez é uma
retomada de uma valorização do feminino que as feministas haviam deixado de
lado.
— Antes nós
queimávamos sutiãs, hoje queremos mostrar a lingerie — compara. Embora como
professora esteja mais acostumada a valorizar a inteligência, Flávia diz que
não se pode esquecer também da “beleza exterior”. — A gente consegue gostar
muito mais do que tem dentro quando o que está fora ajuda — ri.
A professora gastou cerca de R$ 800 para fazer um ensaio
sensual com a empresa Sensual Art e Stúdio Books. O preço saiu até barato, porque para
Flávia a sessão de fotos equivaleu a “uma terapia de curto prazo”. No momento
em que a professora se vestia de colegial no estúdio fotográfico, estava
exorcizando os últimos vestígios de um trauma: a traição do seu primeiro marido
com uma prima dele, nove anos mais nova do que Flávia, que pôs fim a um
casamento de oito anos.
— Quando isso
acontece, você sente que não é desejável — conta. Embora boa parte do trauma
tenha sido superado com um novo casamento, Flávia afirma que o ensaio serviu
para expulsar de vez o que restava nela de baixa autoestima: — O ensaio fez
desaparecer qualquer noção de que eu não desperto o olhar de alguém. Despertou
até o meu.
Juliana: divertimento
e medo de perseguidores anônimos
Mas nem sempre tirar
o sutiã diante de uma câmera dá direito a um passaporte carimbado para a
realização sexual e todas as outras categorias possíveis de felicidade. Por um
lado, nem todas estão preparadas para lidar com o que a exposição pode trazer.
E, por outra, há riscos reais.
Enfermeira de um
hospital federal no Rio de Janeiro, Juliana, 24 anos (Poison Chantilly), adora
participar do LingerieDay para ver as reações que suas fotos provocam. “Isso me
diverte”, conta. Uma reação com a qual não contava foi a de um fã que passou a
persegui-la pela internet.
— Uma vez ele me
deixou uma foto da minha rua no Orkut com o recado ‘Agora só falta o número da
sua casa.’ Tive medo — relata. O fã obsessivo não voltou a dar as caras, mas
Juliana aprendeu a ser mais reservada na Web.
Mariane Custódio
chegou a colocar algumas fotos dos seus primeiros ensaios na Web, mas tirou-os
do ar por não gostar dos comentários que passou a receber. Acima de tudo, Mari
se incomodava em ser vista apenas como uma gostosa.
— As pessoas que não
me conheciam ficavam achando que ficar pelada fosse meu trabalho, quando era um
hobby — diz.
E sexo também tem a
ver com poder. Sempre. Mesmo que seja apenas o poder de dominar alguns
territórios do mundinho da Web — uma guerra na qual a exibição de bundas e
peitos tem o poder de armas de destruição em massa. Há um ano, a estudante
Bárbara Cristina Santos de Lima, 20 anos (codinome Catwoman69), criou um
fotolog sem dar muita atenção ao que fazia, movida por um misto de falta do que
fazer com vontade de chamar a atenção. Mas logo ela entrou no clima belicoso
das demais fotologgers, que disputavam a audiência com uma fúria de
participante de reality show.
— Uma menina faz de
tudo para ganhar mais acessos. Posta foto com peito para fora, ou de roupa
curta. Tem que dar um jeito de estar em primeiro lugar, por cima da outra —
conta Barbara/Catwoman.
Uma garota sem graça
do interior de Minas Gerais que só começou a chamar atenção dos garotos no
final da adolescência, quando seu corpo finalmente ganhou curvas, a instrutora
de vôo Fernanda Lizardo logo percebeu que conseguiria as coisas mais fáceis
usando a sensualidade. Começou a postar fotos sensuais na internet aos 20 anos
porque queria chamar a atenção para seu blog, O Sexto Sexo. O sujeito que visse
as fotos da gostosa iria querer saber o que ela escrevia, era seu raciocínio. Deu
certo: o site fez sucesso e, no ano passado, virou livro.
— A mulher aprendeu
desde sempre que usar a aparência pode ajudar em vários campos da vida:
trabalho, afetivo, familiar... — aponta Fernanda. Ela não vê nada de degradante
nesse uso utilitário para a sensualidade, como apontaria uma leitura feminista
tradicional. Só se for degradante para o homem: — Quer coisa mais degradante do
que um homem se submeter a um par de peitos, a uma bunda?
Sensualidade chama
atenção, mas Fernanda acredita que, para a maioria das pessoas, o exibicionismo
é uma brincadeira que não terá maiores consequências para o cotidiano. O dia a
dia, afinal, passa por outros caminhos.
— O cara que vê a
foto lá longe cria mil fantasias, mas ele nunca conversou comigo — compara. —
Meu chefe quer mais é saber se o relatório do dia está pronto, minha mãe quer
saber se estou me alimentando direito, meu senhorio quer saber do aluguel em
dia...
Nem sexo é tudo na
vida.