Europa vive da memória de um continente que não existe mais e do papel de predominância ao qual se acostumou
Após uma semana de confrontos cada vez mais intensos, a guerra chegou ao ápice na sexta-feira, quando o Senado francês finalmente decidiu votar – e aprovar – a reforma da Previdência Social proposta pelo presidente Nicolas Sarkozy. Entre outras mudanças, a idade mínima para a aposentadoria na França passou de 60 para 62 anos. O que para alguns não foi mais que um ajuste necessário em um país de população cada vez mais velha e com maior expectativa de vida, para outros – a maioria, a julgar pelas sondagens de opinião que cravaram 69% de apoio aos grevistas que protestavam contra a reforma – parece continuar inadmissível. Mesmo levando-se em conta a sociedade politicamente aguerrida que é a francesa, como entender o movimento que incendiou as ruas de Paris e Lyon, bloqueou aeroportos, fechou escolas, comprometeu o abastecimento de combustível e impediu até as apresentações da cantora pop Lady Gaga programadas para este final de semana no país?
“Os acontecimentos na França tomaram tal proporção que a questão das aposentadorias não basta para explicá-los.” É o diagnóstico do cientista político parisiense Bertrand Badie, de 60 anos, para quem em um aspecto os atuais distúrbios lembram os que fizeram história em maio de 1968: a estratégia do presidente Sarkozy para recompor sua combalida popularidade. “Naquela época, a revolta estudantil adquiriu tal amplitude que deixou em pânico o eleitorado de direita no país”, lembra o professor, catedrático de Relações Internacionais da Fundação Nacional de Ciências Políticas de Paris (Sciences Po). “Foi o que permitiu ao general De Gaulle ganhar facilmente as eleições.”
Agora, a 18 meses do pleito que irá definir a permanência ou não de Sarkozy no Palácio do Eliseu, nenhuma das partes mostrou-se disposta a ceder.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone de Paris, Badie, que também é pesquisador-associado do Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais (CERI), afirma que a reforma aprovada não resolve a equação da Previdência no país: “Ela permitirá um alívio de um ano ou dois nas contas e, após as eleições, será preciso fazer outra reforma.” Para ele, tampouco se deve esperar algum refresco nas tensões sociais expressas nas manifestações estudantis e sindicais dos últimos dias. “A crise vem do fato de que a Europa e em particular a França, está falhando em sua inserção no mundo globalizado.
Na sexta-feira, o Senado francês aprovou a reforma da Previdência Social proposta por Sarkozy, apesar do acirramento dos protestos. O sr. esperava algum recuo?
A grande dificuldade foi que o governo, de um lado, e os sindicatos, de outro, já tinham ido longe demais. Entramos numa situação em que o recuo de um ou de outro seria visto como derrota. E, agora, o risco de vermos uma radicalização de ambas as partes não está descartado. Até a semana passada me parecia ainda possível um acordo, uma solução negociada que acalmasse os ânimos. Ficou mais visível a possibilidade de um confronto sério.
Por quê?
Sarkozy joga a carta de maio de 1968 revisitada. Naquele ano, a revolta estudantil adquiriu tal amplitude que deixou em pânico o eleitorado de direita no país. Foi o que, na época, permitiu ao general De Gaulle ganhar facilmente as eleições. O que se passa atualmente com Sarkozy é que ele está com a popularidade lá embaixo, em cerca de 25%, pois metade do eleitorado de direita francês o abandonou. Seu plano, ao permitir esse acirramento de tensões, é que os protestos assustem a direita e a façam cair de novo em seu colo. Uma estratégia, no mínimo, arriscada.
Uma pesquisa divulgada no mesmo dia pelo instituto de opinião pública BVA revelou que 69% dos franceses apoiam a greve.
Exato. E, efetivamente, o grande trunfo dos sindicalistas é esse apoio da maioria da opinião pública, o que inclui parte da direita. Aqui na França, os simpatizantes da direita em geral representam 52 ou 53% da população, enquanto a esquerda conta com cerca de 45%. Esses 69% que apoiam as greves comprova que boa parte da direita está ao lado do movimento sindical. O que é um fenômeno novo e importante. Mas há outro elemento: os acontecimentos na França tomaram tal proporção que a questão das aposentadorias não basta para explicá-los. Existe uma espécie de rejeição geral às injustiças sociais, um sentimento de indignação contra o ultraliberalismo de Sarkozy, suas políticas fiscais favoráveis aos mais ricos e o acúmulo de frustrações que causaram. São muitas as dimensões do conflito.
Existe uma insatisfação difusa em relação à crise do Estado de bem-estar social?
Os sindicatos falam apenas das aposentadorias. Eles não tratam de outras questões, que no entanto estão visíveis nos slogans, nos cartazes, nos fóruns de discussões. Neles, ao lado da reforma da Previdência, figuram o problema do desemprego, dos salários, das liberdades em geral e mesmo a denúncia da discriminação de minorias culturais e das políticas anti-imigração do governo. Nós assistimos a uma espécie de globalização da contestação, algo que é preciso levar em conta.
Essa 'globalização da contestação' explica o engajamento de estudantes secundaristas nos protestos por direitos dos aposentados?
Sim. Creio que há um mal-estar profundo entre os nossos jovens, que temem o desemprego e não se identificam com essa ideologia neoliberal que se transformou, na França assim como em muitos países da Europa, numa espécie de pensamento único. Hoje, após a derrocada dos ideais do marxismo, não restou nada além das promessas do neoliberalismo – que igualmente fracassaram. E os jovens sentem-se profundamente inseguros em relação ao futuro que a Europa lhes reserva. Todas as pesquisas de opinião demonstram que eles temem entrar na vida adulta, diante das poucas perspectivas de emprego e bons salários. “Precariedade” é uma palavra que se ouve com frequência nessas pesquisas qualitativas.
Os acontecimentos das últimas semanas têm a ver com os protestos violentos na periferia de Paris em 2006 e 2007?
A rebelião de 2006 e 2007 estava mais ligada ao fracasso da integração social na França, a um mal-estar em relação à espécie de exílio em que vivem milhares de jovens das periferias de Paris. Agora, o que está em discussão são temas mais banais, de um certo ponto de vista, e que não dizem respeito especificamente às periferias. Tanto que elas não se mobilizaram significativamente até agora. Claro que isso ainda pode ocorrer.
As políticas de restrição aos imigrantes não estão em pauta, desta vez?
A agenda da imigração e da restrição às minorias culturais entrou como uma espécie de cortina de fumaça do governo para ocultar os problemas econômicos e sociais. E isso é também algo de novo na história francesa. É a primeira vez que um governo se utiliza do argumento da denúncia de minorias culturais – mesmo nos anos 30, quando havia uma onda de anti-semitismo, não era o governo, mas a oposição que lançava mão desses argumentos. Agora, ela vem diretamente do governo e o problema é saber se isso acabará por se voltar contra ele ou não. Ainda é muito cedo para dizer.
É preocupante que o governo tenha recorrido a esse tipo de argumento?
Isso me inquieta. Pois é um fenômeno que já afeta quase toda a Europa, talvez não na Inglaterra, mas o vemos na França, na Alemanha, na Suíça, na Itália, nos países da Europa Oriental e mesmo na Suécia, com toda a sua tradição de tolerância e abertura. Está se transformando em um fenômeno europeu, portanto.
Como entendê-lo?
Sociedades que se fecham sobre si mesmas e adotam a exclusão, o isolamento, estão manifestando os sintomas de uma doença. Doença que se deve, em minha opinião, ao fato de que a Europa e em particular a França, está falhando em sua inserção no mundo globalizado. O Brasil, por exemplo, é um dos países mais bem-sucedidos nesse processo de globalização. É uma vitória dos países emergentes.
Vitória que não se deve também à menor regulação de seu mercado de trabalho e ao baixo custo de sua mão-de-obra, em comparação com a Europa?
É claro que sim, mas os parâmetros econômicos e sociais dos países emergentes também se revelaram mais favoráveis à globalização. Mas não acho que a Europa esteja condenada a perder. Estou convencido de que há outras oportunidades e modos de inserção para nós no mundo globalizado atual. O problema é que a Europa vive na memória de um mundo que não existe mais, ainda não despertou para o fato de que há hoje um sistema internacional, um mundo novo que é preciso aceitar, compartilhar o papel de predominância ao qual se acostumou.
Para alguns, a reforma de Sarkozy foi razoável, pois a população envelheceu e a expectativa de vida aumentou. Para outros, os ganhos em produtividade recentes permitiriam a manutenção dos direitos dos aposentados. Qual é a sua opinião?
Tenho uma opinião dupla. Em primeiro lugar, todo mundo está de acordo de que era necessária alguma reforma no regime previdenciário. Já o que não se diz com tanta frequência é que a reforma de Sarkozy, tal como foi proposta, não é suficiente. Ela permitirá um alívio de um ano ou dois nas contas e, após as eleições, será preciso fazer outra. Quer dizer, é um sacrifício que se impôs à população. Em segundo lugar, há outra coisa que deixamos de notar: é verdade que grande parte da população francesa, como a europeia, tem uma expectativa de vida mais elevada há alguns anos. Mas o detalhe é que a saúde não melhorou com a longevidade. Estatisticamente, um trabalhador de 60 anos hoje pode ser tão cansado e desgastado quanto era há 10 anos. Ou seja, junto com o aumento da longevidade ocorreu, por assim dizer, um aumento da duração da doença: você morre aos 100 anos de idade, mas começa a ficar fragilizado aos 60. E será preciso dar suporte a essa população, com asilos, leitos de hospital, estrutura, por quatro décadas.
O anúncio, feito na quarta-feira pelo governo britânico, de um corte de gastos da ordem de £ 83 bilhões e a dispensa de 500 mil funcionários públicos – seguido também de protestos por parte dos sindicatos – reforça o argumento de que a crise é europeia?
Sim. A grande diferença é que o corte de gastos, na Inglaterra, se dá logo após as eleições e, aqui, estamos em período pré-eleitoral. As eleições presidenciais na França estão marcadas para daqui a 18 meses – quando Sarkozy poderá ou não ser reeleito. É um dado que não se pode ignorar e explica, talvez, o tom mais estridente dos protestos franceses.
E o que esperar das eleições de 2012? O sr. crê na sobrevivência política de Sarkozy?
Até lá, muita coisa pode acontecer. Todas as sondagens eleitorais hoje preveem a vitória da esquerda. Mas, em seu País , elas davam também a vitória em primeiro turno a Dilma Rousseff, não? (Risos) Então, é impossível dizer o que ocorrerá. Com o momento impopular de Sarkozy podemos esperar uma movimentação ativa do candidato que vier da esquerda – algo que, como se vê, já modifica profundamente o panorama político francês.
Fonte: http://www.estadao.com.br
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