Rosana Puga de Moraes Martinez, presidente da Associação de Doenças Neuromusculares de Mato Grosso do Sul (Adone). Foto: Ana Maria Assis/Capital News
Rosana Puga de Moraes Martinez é presidente da Associação de Doenças Neuromusculares de Mato Grosso do Sul (Adone) e luta há seis anos ao lado do diretor presidente da Rede Brasileira de Cooperação ao Desenvolvimento (Unepe), Naelson Ferreira, por uma vida digna aos portadores de distúrbios neuromusculares. Rosana é formada em Biologia, Letras e pós-graduada em Gestão Pública , mas há mais de 15 anos ela estuda sobre doenças neuromusculares por conta própria. O motivo é seu filho, o jornalista Pedro Martinez, portador da doença que se manifestou quando ele tinha cinco anos. O Capital News conversou com Rosana, que no início lutava apenas por seu filho e hoje, briga pelos direitos de todos os associados da entidade que fundou. Justiça, acessibilidade e qualidade de vida, são apenas alguns dos objetivos e sonhos da Adone e da Unepe.
Capital News: Como surgiu a Adone e o vínculo com a Unepe?
Rosana Martinez: A Adone foi fundada em março de 2005 e o centro de referência da Unepe foi fundado em 2006. Quando eu descobri a doença do Pedro ele tinha cinco anos. Foi aquele choque, mas somos parte privilegiada da sociedade, temos instrução. Eu sabia que informação era tudo o que precisávamos. Fui para São Paulo e comecei a estudar por conta própria sobre a doença do meu filho. Logo conheci pessoas com problemas parecidos com os meus e começamos a entrar em contato. Tinha gente que me ligava pedindo informação, até que começaram a sugerir que eu montasse uma associação, pois assim poderia ajudar muita gente. Eu me incomodava porque conhecia pessoas que não conseguiam as mesmas oportunidades que eu conquistava para o Pedro. Eu não achava justo eu conseguir para o meu filho o que elas não conseguiam para os filhos delas por terem menos conhecimento que eu. E eu comecei a Adone com esse espírito, montando primeiro um Blog. Logo conheci Naelson, portador de doença neuromuscular, que já vinha da Unepe, fundada no sul da Bahia. A Unepe, inicialmente, tinha cunho educativo e de assistência social, assim como Adone. Naelson também conhecia algumas famílias e gente que queria ajudar, então, fundamos a Adone com 14 famílias e profissionais voluntários. Foi uma surpresa o projeto crescer tão rápido, não pensávamos que teria tanta gente com os mesmos problemas. Hoje, temos 750 pessoas portadoras de doenças neuromusculares sendo atendidas pelo centro.
Capital News: Como você e as demais pessoas que participam dos projetos vêem o papel da Adone e da Unepe na sociedade?
Rosana Martinez: Nós fazemos um atendimento multidisciplinar aos pacientes portadores de doenças neuromusculares que provocam distúrbio muscular, ou seja, estamos fazendo o que o Poder Público pode fazer, deve fazer, mas não faz. Existem portarias que obrigam o Poder Público a dar assistência multidisciplinar a esses pacientes, pois não basta eles receberem o remédio ou um aparelho se não tem atendimento médico especializado e acompanhamento. O paciente precisa de vários tipos de especialistas, como fisioterapia, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo. Por isso fornecemos um atendimento que é multidisciplinar, no centro de referência (Unepe) nós conseguimos instituir isso.
Capital News: Qual a importância da orientação ao paciente prestada pela Adone?
Rosana Martinez: Às vezes o paciente vai até o serviço público em busca de algo que está precisando. Lá, um funcionário que não é bem orientado ou não tem boa vontade fala um “não” para ele, que se conforma e volta para casa. E nessa situação é que nós orientamos: não é bem assim, você não pode aceitar o primeiro não que você ouve. Existem leis para isso e elas têm que ser cumpridas, a despeito do que pensa o poder público ou o funcionário que está na linha de frente. Eles têm que lutar porque a vida desses pacientes, a qualidade de vida, a expectativa de vida deles depende desse tratamento. E nós fazemos essa orientação, começou com um blog e hoje atendemos em parceria com a Unepe, e a coisa foi crescendo.
Outro exemplo de orientação importante que damos aos nossos pacientes é de sempre levar consigo a carteirinha da Adone. Ela traz informações importantes sobre procedimentos médicos naturais para uma pessoa sem doença neuromuscular que pode até matar um de nossos pacientes. São questões simples de informação que podem salvar uma vida.
Carteirinha da Adone evita que pacientes passem por procedimentos prejudiciais a sua doença por médicos desavisados
Foto: Ana Maria Assis/Capital News
Capital News: Qual a expectativa desses pacientes quanto ao tratamento?
Rosana Martinez: Todas as doenças neuromusculares são degenerativas, progressivas e não têm cura. O tratamento tem dois objetivos: aumentar a expectativa de vida e fornecer qualidade de vida. Hoje é comprovado que com o tratamento você pode aumentar em 10 anos ou mais a expectativa de vida, dando esperança nesse tempo de encontrar cura, porque todas estão sendo pesquisadas, hoje temos, por exemplo, o estudo das células tronco que é a maior esperança deles.
As doenças neuromusculares são familiares, genéticas. Há então, por isso também, o trabalho de aconselhamento, não temos como fazer os testes genéticos aqui em Campo Grande , mas já é possível fazer nos grandes centros. Atendemos por exemplo uma família de 25 pessoas com a doença. Eles vão casando e tendo filhos sem saber, sem preocupação nenhuma, vão se reproduzindo, e no futuro vão ter que se virar, um não vai poder cuidar do outro porque também terá a doença. Por isso temos uma reunião de portadores e familiares todo domingo do mês, porque não basta cuidar do paciente, tem que cuidar da família inteira.
Capital News: Sem a Adone e a Unepe, qual o caminho que o poder público oferece aos portadores de doenças musculares na busca do tratamento da doença?
Rosana Martinez: O que o governo oferece é passagem de avião e uma diária miserável de 25 reais para que os pacientes busquem tratamento em São Paulo. Essa é a política do estado e isso não é o ideal. A gente fica indignada com isso, uma passagem e 25 reais não cobrem nada. As pessoas acabam voltando para Campo Grande e ficando sem tratamento.
Capital News: O poder público acredita no trabalho da Unepe e Adone?
Rosana Martinez: Enquanto profissionais sim, enquanto autoridades não. Afinal, não conseguimos nos credenciar pelo SUS, mas temos pacientes encaminhados de vários postos de saúde e até do consultório de médicos que trabalham no poder público. Acontece que como médico eles acreditam no nosso trabalho, como secretários ou servidores públicos não. Nós temos vários pacientes que não andavam e que hoje andam, crianças que não falavam, que não ficavam em pé. Mas , é como tudo nesse país, a vontade política não se resume nisso: pegar o dinheiro público e aplicar no que se deve.
Capital News: Além da assistência à saúde, existem outros projetos da Adone e Unepe?
Rosana Martinez: Consideramos nosso trabalho como uma gotinha no oceano, mas buscamos e temos vários projetos paralelos aos de assistência a saúde. Um dele é o guia de locais acessíveis de Campo Grande que apresentamos para o Crea, que aceitou muito bem. Com isso, outras instituições já nos abriram as portas, como as universidades UFMS, UCDB, Uniderp e Estácio de Sá. Hoje temos 30 pessoas colaboradoras e formamos um pólo que é o fórum permanente de acessibilidade de Campo Grande, no Crea, que é aberto a sociedade. Temos um vídeo no “You Tube” sobre o projeto e o diferencial é que ele tem cunho informativo e formativo de opinião. O guia pretende despertar o olhar da sociedade paro o assunto. A acessibilidade diz respeito a uma gama muito grande da sociedade, aos idosos, às gestantes, aquele rapaz que jogou futebol e vai ter que ficar meses de perna enfaixada, a mãe com carrinho e bebê. Todos nós em um momento da nossa vida vamos precisar disso. O projeto terá uma versão impressa limitada e outra virtual mais ampla e permanente. No futuro quem não foi vistoriado vai poder pedir para ser incluído na versão virtual. Fomentando a competição positiva: “meu vizinho tem mais acessibilidade, eu também quero”.
Um outro projeto muito bacana é o da capacitação, a gente tem recebido muitos telefonemas de grandes empresas pedindo funcionários para cumprirem a lei que dá vagas a deficientes, mas não tem como porque não há profissionais com mínima qualificação. Nós buscamos uma oportunidade junto a Avape, que realiza cursos de capacitação com o apoio do Banco Sulamericano de Desenvolvimento. Eles fornecem alguns recursos para montar subsedes em cidades do Brasil, e então fizemos o cadastro da Unepe no edital. Ao todo se inscreveram 400 unidades de atendimento do Brasil todo, nós fomos uma das sete entidades escolhidas. No dia 10 de junho foi realizada a solenidade de lançamento da capacitação. Vai ser bom porque, primeiro ajuda na autoestima deles e, depois eles poderão ajudar no orçamento da família.
Capital News: Quais são os custos, além dos profissionais, para manter o atendimento gratuito?
Rosana Martinez: Temos despesas como remédios, pois temos uma farmácia também no centro. Disponibilizamos procedimentos de alta tecnologia, atendimento multidisciplinar, fisioterapia, e tudo isso para 750 pessoas. Nós recebemos até ambulâncias do interior do estado. Nós passamos a achar, além de inviável, injusto também. Porque na verdade, o Sus é que deveria fazer esse atendimento, e ainda se o poder público não nos considera como aptos para fazer isso em nome deles, então vamos ter que devolver a responsabilidade.
A maioria dos pacientes são carentes, mas alguns que têm bastante recursos, fazem doações voluntárias, fazemos também eventos e festas para arrecadar dinheiro, temos até um bloco de escola de samba, formado por nossos próprios pacientes. E tudo o que conseguimos é assim, porque o que recebemos do estado é uma coisa mínima, 5 mil reais para material de consumo, sendo que só a agulha para aplicação de um remédio específico custa 300 reais. O município fornece medicamentos básicos, mas básicos mesmo, para adquirir os específicos de alto custo os pacientes tem que entrar na justiça.
Com o aumento de pacientes fica cada vez mais difícil mantermos o atendimento, começou a ficar inviável manter o atendimento gratuito. Fomos buscar apoio do poder público, mas existe muita política por trás disso, lutamos há dois anos e não conseguimos. Recentemente fizemos uma assembleia com profissionais que trabalham com a gente e vimos que não dá mais para atender gratuitamente e estamos estudando uma maneira dos pacientes pagarem uma taxa social.
Capital News: Quando iniciou o projeto, vocês acreditavam que um dia teriam de cobrar alguma taxa pelo atendimento? Foto: Site da Unepe
Capital News: Quando iniciou o projeto, vocês acreditavam que um dia teriam de cobrar alguma taxa pelo atendimento?
Rosana Martinez: Não esperávamos que teríamos de fazer isso. Estamos chateados porque tínhamos um sonho. Hoje atendemos pessoas até do interior de São Paulo e o nosso sonho é proporcionar esse atendimento para quem pode e para quem não pode pagar. Mas não tivemos escolha, até já fizemos uma pré-reunião com os pacientes e já avisamos que vamos mudar o sistema de atendimento. Vamos estudar uma maneira de cobrar a taxa social que deverá ser definida em 15 ou 20 dias, mas queremos manter 10% de gratuidade para poder continuar com o tratamento dos mais carentes. Tem gente que não dinheiro nem para o passe de ônibus, famílias para as quais fornecemos cesta básica, pois esses pacientes têm que ter uma alimentação balanceada e às vezes não têm condições nem para isso.
Capital News: Qual será o procedimento para mudar o sistema de atendimento acrescentando a cobrança?
Rosana Martinez: Vamos contratar uma consultoria em questão de saúde, contar nossa realidade, apresentar nossa demanda e os serviços que oferecemos. Não queremos fazer nada de maneira arbitrária nem aleatória. Vamos analisar a melhor maneira de colocar em prática o sistema de taxas, como o atendimento da clínica da Uniderp, por exemplo, em que o paciente paga uma taxa social. Vamos atender por meio desse sistema e vamos continuar orientando e dando aconselhamento aos pacientes para que busquem seus direitos. A questão da assessoria e da orientação do paciente não vai parar.
Capital News: Qual o argumento do poder público em não credenciar a Unepe nos serviços prestados pelo Sus?
Rosana Martinez: Nós passamos por um processo há dois anos lutando por credenciamento junto ao Sistema Único de Saúde (Sus). Hoje nós temos o título de “Hospital Dia”, então nós vínhamos brigando pelo credenciamento e um dos critérios pra esse credenciamento é que não pode haver trabalho voluntário. Para obedecer a esse critério nós passamos a remunerar nossos profissionais. Eles têm contrato e uma remuneração referencial, que não é a mesma coisa que o médico e o fisioterapeuta ganham no consultório deles, pois pagamos de acordo com o que a entidade pode pagar, mas é uma remuneração. Temos convênio com universidades de fora do estado, como a USP e o Hospital Universitário de Ribeirão Preto, dois médicos dessas universidades vem uma vez por mês atender no centro.
Capital News: Como funciona a assessoria jurídica da Adone?
Rosana Martinez: O custo da assessoria jurídica é nulo, porque os pacientes entram pela justiça gratuita em ações coletivas, e o trabalho dos advogados é praticamente voluntário. A maioria das pessoas são carentes e as ações são coletivas. Eles pegam um número de pacientes que precisam de terminado medicamento, e um processo ou outro a Adone acaba custeando quando tem algum valor. Se for esperar da defensoria pública o processo acaba demorando ainda mais. Isso porque existem vários prazos que a justiça oferece que não condizem com os prazos de quem não pode ficar nem cinco dias sem remédio. No caso do Pedro, nós lutamos na justiça para conseguir o aparelho respiratório que ele precisa para dormir. Após três liminares do juiz, nove meses de luta, a Secretaria de Saúde forneceu o aparelho. Isso porque na última liminar o juiz ameaçou prender a secretaria caso não obedece a lei.
Capital News: Qual a situação dos processos judiciais em que a Unepe e Adone atua em busca de recursos?
Rosana Martinez: Nós temos várias ações no Ministério Público, tanto Federal quanto estadual. Quando representamos pedindo algo que é nosso, as justificativas para negar o nosso direito são as mais estapafúrdias. Quando o assunto é o credenciamento junto ao Sus, eles respondem que “já tem isso ou aquilo”, sendo que sabemos que eles não têm, e que somos nós que prestamos o atendimento adequado. Para aceitar o nosso serviço como público falam que falta uma reforma aqui, uma troca de pia ali, e nós fazemos tudo para atender seus requisitos, mas sempre falta alguma coisa. Eu me pergunto? Será que eles conhecem um posto de saúde? Ou será que lá está tudo correto conforme os requisitos deles? Na verdade a questão é política. E isso indigna a gente, porque o interesse político deles não é interesse do paciente. Nós, eu e Naelson, fazemos isso pelas pessoas, porque nos incomoda a situação precária delas, mas eu acho que o estado não se incomoda com isso. Eles sabem que o dinheiro aplicado aqui não vai para a meia, cueca ou gaveta de ninguém, e sim para o tratamento dos pacientes.
Capital News: As fundações da Adone e da Unepe foram as realizações de um sonho. Qual o sonho maior ainda a ser realizado?
Rosana Martinez: Nós queremos construir um hospital de reabilitação especifica e um arquiteto voluntário já fez o projeto e já solicitamos um terreno da prefeitura. O centro de referência é pequeno, temos o titulo de hospital dia, mas não temos condições para internação. Quando pacientes passam mal e precisam de internação, vão para o hospital e acabam fazendo procedimentos de emergência que são proibidos para eles. Como tomar oxigênio, anestesias gerais, procedimentos que podem piorar a situação deles ou até matar. O hospital de reabilitação específica teria atendimento amplo, e eles não correriam o risco de o médico não saber as contra-indicações da doença. Assim que a prefeitura formalizar a doação do terreno nós vamos promover eventos pra construir esse hospital. Não sei se eu vou ver esse hospital pronto ainda em vida, mas enquanto eu estiver aqui vou batalhar por ele, a sementinha nós vamos plantar.
Aparelho respiratório só foi entregue depois de três liminares e nove meses de briga na Justiça
Foto: Ana Maria Assis/Capital News
Veja o site da Unepe: http://www.unepe.org.br
Fonte: Ana Maria Assis - (www.capitalnews.com.br)
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